#02 | LADO B: Cultura judaica dá samba, sim
O bloco Klezmer do Bom Retiro faz jus à democracia carnavalesca e coloca na rua bloco de influência do leste europeu

Cultura judaica dá samba, sim
O bloco Klezmer do Bom Retiro faz jus à democracia carnavalesca e coloca na rua bloco de influência do leste europeu
por Maria Eduarda dos Anjos
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No Brasil, festa é o assunto mais sério que se pode tratar em fevereiro. A data já está marcada no subconsciente nacional, agora, quem comemora e onde comemora formam o esqueleto da imagem do Carnaval, os sons e brilhos que aparecem de primeira quando se pensa no festejo.
No bairro do Bom Retiro, um grupo jovem decidiu chegar junto da fanfarra na rua, mas de uma forma diferente: tocando Klezmer, ritmo que veio ao Brasil pela diáspora judaica, o bloco Klezmer do Bom Retiro nasce em pleno domingo de pré-carnaval. No dia 04 de fevereiro de 2024, as pessoas que passavam perto da Praça Coronel Fernandes Prestes por volta das 14hrs puderam ouvir, talvez pela primeira vez, o ritmo agitado de clarinetes, saxofones, acordeões e flautas. Desenhando os primeiros passos do projeto, estão Gabriel Neistein e Alexander Parke, que fizeram a direção musical, e Fernanda Sardas e Beatriz Kalichman, responsáveis pela produção. Esses quatro multiplicaram suas mãos em várias e deram outro jogo de cor, som e gente a uma das formas mais brasileiras de celebrar sua cultura.

De carnaval em carnaval, nasce um bloco
O Bloco Klezmer do Bom Retiro é, literalmente, história de Carnavais passados. “Estávamos no bloco Cordão Cheiroso quando conhecemos a Beatriz, e no final, a Fer sugeriu que a gente começasse um bloco Klezmer, mas naquela empolgação do Carnaval. Só que a gente levou isso a sério mesmo!”, relembra Gabriel. Ele e Alex já tocavam juntos na banda Klezmer Três Rios há alguns anos, então a ideia de reunir uma galera para tocar Klezmer não era tão distante. Foi aí que Beatriz e Fernanda entraram na produção, e naquele mesmo ano já começaram a mobilizar o que era necessário para que a festa saísse do papel. "A Prefeitura lança um edital por volta de agosto ou setembro, você se inscreve e espera ver se é aceito. Explicamos sobre a ideia do bloco, qual subprefeitura toma conta de por onde vai passar, horário, etc. Por ser um bloco pequeno, foi bem mais fácil colocá-lo na rua. No nosso caso, não tínhamos caixa de som ou trio elétrico, e a ideia era fazer um bloco diferente e familiar. Ser aceito muda as coisas, dá uma confiança maior”, explica Fernanda.
No coração (e nome) do bloco, o Bom Retiro é levado para além do endereço, mas como filosofia do que é aquela folia. Antes de prosseguir falando do cortejo em si, é importante que o leitor entenda o que é esse lugar. Em 2009, o IPHAN, Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico, identificou em inventário mais de 200 referências culturais de distintos grupos sociais no Bom Retiro, categorizando o bairro como multicultural, ou seja, um pedaço de cidade em que diversos grupos imigrantes coabitam sem se segregar, fundir ou criar um terceiro produto. A comunidade judaica está ombro a ombro com os bolivianos, paraguaios, gregos e coreanos, e foi ali que essas e outras nacionalidades se sentiram confortáveis o suficiente para se estabelecerem pós-migração sem medo que sua identidade de origem fosse borrada ou engolida por completo. É com essa generosidade e respeito com o coletivo que o dia-a-dia se faz no Bom Retiro, e é isso que inevitavelmente transborda para o bloco.

Os meninos focaram na convocação e preparação da banda, e no final, conseguiram juntar cerca de 20 músicos dos mais variados níveis de conhecimento do Klezmer. Era importante para eles que fosse uma festa democrática, tanto para quem é simpático ao gênero musical quanto àqueles que querem se aprofundar no que já sabem de Klezmer. Gabriel lembra que o primeiro ensaio foi em dezembro de 2023 e tinham mais o intuito de atrair a galera, que eles se familiarizassem com a ideia e com a música. "Acendemos as velinhas para o Hanukkah e tudo. Fizemos uma improvisação em que se segura uma nota e os demais vão tocando em cima, e os primeiros ensaios foram se desenrolando, bem mais didáticos. Depois, tivemos que pegar mais no tranco para dar conta do repertório, criamos partituras, e no final todo mundo conseguiu tocar”.
E de boca em boca, as pessoas foram aparecendo para tocar, e de boca em boca, também ajudaram nas doações para pular um Carnaval iídiche. “O que acontece, com certeza, é a divulgação do próprio bairro. Ainda é algo que tem escala comunitária, então grande parte das pessoas eram conhecidas, ou conheciam pelo boca a boca. É mais orgânico e é ótimo. Acho que essa é a melhor forma”, explicou Fernanda.

Klezmer: pré-bloco e pré-Brasil
Se não é nem fanfarra, samba ou axé tocando nesse Carnaval, afinal, o que é o Klezmer? “Essa é a pergunta mais antiga para a comunidade Klezmer”, brinca Alex. Em poucas palavras, ele pode ser descrito como música judaica instrumental do leste europeu, com fortes influências de música húngara, grega, turca e cigana. Com a Segunda Guerra Mundial e o holocausto a destruição da vida e cultura judaica na Europa e a formação do Estado de Israel, houve uma grande crise na cultura íidiche e o Klezmer entre as décadas de 40 e 60 . A partir disso, intérpretes do gênero e pesquisadores tiveram muito trabalho para entender onde essa música era tocada tradicionalmente, porque não se encontrava mais esse lugar tradicional. Nessa pesquisa, notou-se que os diferentes subgêneros do Klezmer vem no dia do casamento judaico, e seguem aparecendo em datas comemorativas não-litúrgicas.
Não há distinção verbal entre o gênero musical e a pessoa que o pratica, uma polissemia que carrega uma questionamento filosófico : a palavra vem da junção do hebraico kley, que pode significar ferramenta ou vaso, e zemer, que é música, “então, talvez seja o próprio instrumento que contém a música, ou o próprio músico, sabe?”, propõe Gabriel.

No Brasil, o Klezmer é conservado pela comunidade judaica e serve como um portal para entender a identidade judaica brasileira e internacional, pré Segunda Guerra Mundial. Alex conta do resgate que tentam fazer do Klezmer que era tocado no Bom Retiro durante os anos 30,40 e 50, que carecem de documentação. “A partir dos anos 60, a identidade sionista diaspórica começa a ser ligada diretamente à identidade israelense, enfraquecendo a cultura yiddishe e generalizando uma tradição hebraica que não necessariamente está vinculada à tradição musical do Klezmer”
O ritmo não estourou a bolha, mas segue vivo e sendo celebrado em São Paulo. O Kleztival, um festival que reúne músicos locais e internacionais deste gênero, acontece há 13 anos na capital. Os meninos comentam que os herdeiros dessa cultura do leste europeu se mantêm em contato. “O Marcelo, Rafa e o Domingo, tem uma banda de Balcan a Um Tza Fanfarra. Além dele também se juntaram músicos da Mczja Tabebo, Zamarim, Alpacas e Klezmer Kabaret, amigos do exterior, do teatro e até de banda de forró.”

Retiro de todos
A Casa do Povo, onde a banda fez a concentração do bloco, é um espaço fundamental para a preservação da cultura iídiche no bairro. A Casa abriga o TAIB, o Teatro de Arte Israelita Brasileiro, recebe círculos de reflexão e estudos judaicos, e reúne há mais de 30 anos o Coral Tradição, que ensaia canções iídiche toda segunda-feira.
Quem rege o coral é Hugueta Sendacz, figura que é um patrimônio vivo do bairro. A senhora de 97 anos chegou a ser aluna de Mário de Andrade e sempre foi voz ativa no Bom Retiro, traduzindo peças do iídiche para o português, atuando e ensinando música clássica e comandando o Coral. Com esse histórico, nada mais justo que ela participar do bloco também. " Teve uma hora que a Hugueta desceu para a rua e estava ali com a gente, regendo uma das músicas dela, uma senhora de quase 100 anos. Ter ela ali foi histórico. Foi lindo. Coisa de arrancar lágrimas de muitas pessoas. Era um bloco construído pela comunidade e para a comunidade, muitos estavam ali por conta dessa ideia também”, descreveu Fernanda.

O bairro hoje sofre tentativas de homogeneizar esse caldo cultural e torná-lo o “bairro coreano de São Paulo”. O projeto “Korea Town” é incentivado pelo consulado Sul-coreano e autoridades municipais, e inclui ações como a mudança de nomes de rua. Um projeto de lei propunha a troca do nome da Rua Três Rios para “Rua Seoul” e a adição ao nome da estação de metrô, que se tornaria “Estação Tiradentes- Coreia do Sul”.Uma das ruas principais já ganhou complemento, virou “Rua Prates- Coreia” em 2022. Além desses rebatismos, a proposta também inclui a instalação de lanternas coreanas nos postes públicos e murais dos prédios. O projeto se assemelha ao que aconteceu com o bairro da Liberdade, o “bairro japonês” de São Paulo, há cinquenta anos atrás, mas vem sendo rejeitado pelos órgãos técnicos de patrimônio em nível municipal, estadual e federal.
Apesar dessas tentativas de se produzir um bairro monocultural, o Bom Retiro se mantém multicultural, a mudança de sotaque de esquina em esquina. No dia 4 de fevereiro, o Bom Retiro cantava em três línguas diferentes: iídiche, espanhol e coreano. Nessa ordem, passava um bloco recém-nascido, duas ruas para cima, desfilava o Carnaval Boliviano, fanfarra já conhecida do bairro, e na Praça Coronel Fernandes Prestes acontecia o Ano Novo Coreano. Alguns esbarrões à parte, a lei da boa vizinhança prevalece, nenhuma festa para por causa da outra. O bairro é um semeador de tradições centenárias, oferecendo o espaço necessário para o resgate e abrigo da memória, preservando o passado para que aquela cultura resista no futuro.
